Parte fundamental da história da Escola de Aplicação da UFPA são seus projetos de pesquisa, ensino e extensão, suas lutas e suas (re)existências. Nossa história de hoje fala sobre um pouco de tudo isso e tem como pano de fundo a história do projeto Educação e cultura: o entrelaçar do Círio de Nazaré nas vivências da Escola de Aplicação, um dos mais longevos dentro da nossa trajetória que fala muito sobre nós.
Sabemos que a história de devoção do povo paraense à Nossa Senhora de Nazaré é secular. Nos tempos da escolinha, quando nossa escola funcionou no Palacete Rita Bezerra, a procissão do Círio de Nazaré passava em frente ao prédio que abrigou a nossa escola entre os anos 1960/1970. O vídeo a seguir foi produzido no ano de 1974. Esse foi o último ano de funcionamento da nossa escola na Av. Nazaré e, é muito provável, que muitos dos nossos ex-alunos, docentes e servidores tenham contemplado a procissão nas dependências do antigo palacete.
Belém, 1974 - Círio.
Fonte: Fragmentos de Belém.
Na época em que este vídeo foi produzido, nosso país vivia sob os auspícios da ditadura militar que se instalou no país após o golpe civil-militar de 1964. Durante esses governos, reformas no campo da educação foram implementadas. A Lei n. 5.692 de 11 de agosto de 1971, por exemplo, unificou o ensino primário com o antigo ensino ginasial e, a partir de então, o antigo primário se tornou ensino de 1º grau e os cursos colegiais passaram a ser denominados ensino de 2º grau. Nessa época, o modelo de educação que vigorava no Brasil foi baseado na profissionalização, na moral e no civismo. O pensamento crítico foi desestimulado e diversos professores e professoras foram perseguidos, presos e torturados. Nessa mesma época houve uma reaproximação entre a igreja católica e o Estado e ambos tinham o interesse de inspirar, através do ensino religioso, preceitos cristãos e valores morais católicos no seio da comunidade escolar.
Uma questão importante, que precisa ser registrada, é que desde a ditadura militar o ensino religioso faz parte do currículo da educação básica, mas sua matrícula é facultativa. Atualmente, a disciplina ensino religioso preza por uma formação pautada na reflexão sobre fundamentos, costumes e valores das diferentes religiões existentes na sociedade. Diferentemente da época da ditadura militar, o que se busca atualmente é um ensino transversal com atividades que estimulem o diálogo, o respeito entre as religiões e a luta contra a intolerância religiosa.
Com o fim da ditadura militar, no ano de 1985, muita coisa mudou em nosso país e, sobretudo, na educação. A luta pela democracia culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã. Ainda no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990, concursos públicos foram abertos para os cargos de docentes e técnicos administrativos para o então Núcleo Pedagógico Integrado. Uma nova geração de professores e professoras ingressou na nossa escola. Essa geração foi embalada pelo movimento de renovação da educação que avançou por todo o Brasil. Profissionais da educação básica discutiam o futuro da educação e a importância da existência de projetos no interior da escola.
Nossa história de hoje conta um pouco da história dessa geração e de um dos mais longevos projetos de ensino, pesquisa e extensão da Escola de Aplicação. Falaremos sobre o projeto que, há mais de 30 anos, entrelaça o Círio de Nazaré com nossas histórias, memórias e com o nosso fazer pedagógico.
A década de 1990 no Brasil foi marcada por um contexto de crise política e econômica. Muitos dos professores e professoras que ingressam no NPI nessa época almejam uma educação que fosse para além das quatro paredes da sala de aula. Foi nesse contexto que projetos de ensino, pesquisa e extensão passaram a ser apresentados oficialmente à gestão universitária. Tais projetos visavam um olhar sobre a nossa cultura, a nossa religiosidade, o nosso lugar dentro da universidade e as nossas vivências.
Se você for a Escola de Aplicação hoje e perguntar a algum colega da equipe de professoras e professoras qual o projeto mais antigo da escola, certamente terá como resposta "o projeto do Círio". Se você for mais além e perguntar quando se iniciou a história do Círio, na nossa escola, muitos te dirão que ele acontece há mais ou menos 20 ou 30 anos.
Em uma das memórias registradas em uma conversa informal no WhatsApp, ouvi que "reza a lenda", que desde os anos 1980/1990, ao se aproximar o mês de outubro no NPI, a professora de artes, Graça Mulatinho, saia pelas salas de aula recolhendo flores para enfeitar a berlinda. Na semana do Círio de Nossa Senhora de Nazaré a berlinda enfeitada com as flores entregues pela comunidade escolar saia em procissão pelos corredores do NPI em homenagem à padroeira da Amazônia. Cartazes do Círio, balões, fitas coloridas se entrelaçavam com a fé e a emoção de todos que celebravam o momento. Esse momento passou a se repetir e, por mais que não saibamos ao certo quando ele começou, fato é que ele dura até hoje e, ao longo desse tempo, ele se transformou e passou a incorporar outros elementos que falam muito sobre a história dos 60 anos da EA/UFPA.
Cartaz do Círio de Nossa Senhora de Nazaré do ano de 1990.
Nos anos 1990 havia um movimento nacional de luta pela educação, que ocorreu especialmente no interior dos chamados Colégios de Aplicação e Escolas de Aplicação(CAP). Educadores e educadoras em todo o Brasil lutaram para superar os impactos negativos da educação herdada dos tempos da ditadura militar. No interior dos CAP, projetos de ensino, pesquisa e extensão passaram a ocupar o lugar da experimentação e tiveram por base o pensamento crítico, o protagonismo estudantil e que a educação não podia ser vista como mercadoria no Brasil. Ser professor ou professora de um CAP, nessa época, era fazer parte de uma rede que discutia o futuro da educação no Brasil no contexto de implementação de uma agenda global de educação, agenda essa que iniciou-se em 1990, com a Conferência de Jomtien, na Tailândia, onde foi aprovada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos.
Nesta década, os CAP viveram em um tempo onde educadores e intelectuais prestigiavam o protagonismo das instituições. Para muitos desses intelectuais, os CAP representavam a vanguarda da educação no Brasil, pois, apesar dos 21 anos da ditadura militar (1964-1985), foram os CAP que seguiram desenvolvendo propostas arrojadas para a educação no Brasil e experiências educacionais que serviram de modelo no contexto da redemocratização. Um episódio da história dos 60 anos da nossa escola que atesta esse fato foi a visita de Paulo Freire, Patrono da Educação no Brasil, à nossa escola no ano de 1992 (Essa história será o tema da nossa próxima postagem).
Paulo Freire em conferência sobre a educação no Brasil no auditório do Núcleo Pedagógico Integrado da UFPA em dezembro de 1992. Fonte: Acervo Reencontro NPI.
Nos anos de 1993 e 1994 dois eventos foram organizados pelo Ministério da Educação e visavam a organização do posicionamento dos colégios e escolas de aplicação em relação à educação básica no Brasil. Em 1993 o evento ocorreu em Brasília e teve como tema Repensando as Escolas de Aplicação. Em 1994 foi a vez de Santa Catarina sediar o evento que teve como tema O Plano Decenal e os Colégios de Aplicação.
Neste clima nacional de renovação da educação básica chegou ao NPI, no ano de 1995, a professora Wanderléia Medeiros Leitão. Na época de sua chegada esteva à frente da gestão do NPI o professor José Antônio Gomes de Sousa Alves (1994-1998). Foi na gestão dele que foram apresentados os primeiros projetos de pesquisa do NPI registrados junto a UFPA, conforme podemos ver na tabela a seguir:
Anuário estatístico UFPA 1998. Disponível em: https://www.anuario.ufpa.br/index.php/edicoes-anteriores.
Um destes projetos foi apresentado pela professora Wanderléia Medeiros Leitão e tratava exatamente do Círio de Nazaré. Desde a sua concepção, o projeto foi pensado como um meio de discutir o Círio de Nazaré para além da religiosidade. O projeto tem como foco os alunos e alunas da educação infantil e, nesse sentido, é visto como um lugar de possibilidades, diálogos e entrelaçamentos desse universo com o universo multicultural de elementos que constituem a festividade do Círio. Podemos afirmar que o projeto "inventou" uma tradição no seio de nossa comunidade. Para o historiador Eric Hobsbawn, o termo "tradição inventada" pode ser utilizado num sentido amplo, pois inclui as "tradições" que foram realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, da mesma forma que inclui também àquelas que são mais difíceis de localizar no tempo, mas que podem se estabelecer com velocidade.
Círio da Escola de Aplicação da UFPA.
Atualmente o projeto Educação e cultura: o entrelaçar do Círio de Nazaré nas vivências da Escola de Aplicação, abriga as ações desenvolvidas em toda a comunidade escolar. O projeto chega aos nossos dias compreendendo que a Escola de Aplicação possui uma dinâmica própria e que é propicia ao desenvolvimento de atividades lúdicas de cunho cultural em todas as suas etapas de ensino. Essa perspectiva reforça um horizonte de possiblidades plural sobre aspectos da cultura amazônica que está entrelaçada ao Círio de Nazaré e que pode ser abordada de forma pedagógica junto à nossa comunidade escolar.
Brinquedos de miriti produzidos e outros artesanatos produzidos junto com discentes da Educação Infantil da EA/UFPA.
S/D.
Fonte: Acervo do projeto Educação e cultura: o entrelaçar do Círio de Nazaré nas vivências da Escola de Aplicação.
O projeto dialoga a todo momento com elementos da cultura amazônica. Estes elementos são abordados sob duas perspectivas centrais, quais sejam, a complexidade de elementos culturais do festejo e a ancestralidade amazônica. Nesta perspectiva o projeto encontra os elementos que permitem a extrapolação do ponto de vista da religiosidade e oferece à comunidade escolar a possibilidade de acúmulo de uma bagagem plural que abarca múltiplos olhares, linguagens e narrativas sobre o que é ser amazônida. Reconhecida a potência desse "ser amazônida" o passo adiante é o da comunicação desse lugar com o lugar da expressão da fé, da solidariedade, da fraternidade, dos cheiros, dos sabores, da movimentação e, sobretudo, o lugar da tolerância religiosa.
Mantos da fé.
S/D.
Fonte: Acervo do projeto Educação e cultura: o entrelaçar do Círio de Nazaré nas vivências da Escola de Aplicação.
A costura teórica e metodológica do projeto contém a discussão sobre as mudanças provocadas pelo Círio que afetam a nossa cidade, a nossa escola e a nossa percepção sobre nós mesmos. Isso ocorre quando nossa comunidade escolar compreende que o cheiro da cidade muda no mês de outubro devido ao cozimento da maniva. Quando discute conceitos como povo, comunidade, fé, ancestralidade. Quando aprende a reconhecer sentimentos, movimentos corporais e a magia contida em nossas mãos quando aprendemos a produzir brinquedo de miriti ou um manto de fé.
A proposta do projeto leva a nossa comunidade a se projetar para fora de si e em direção ao todo. O projeto entrelaça os alunos e alunas nele envolvidos com a importância da natureza e a questão climática. Ensina a identificar cheiros, sabores, lugares de memória, afetividades. Ao sair de si, ao deixar as suas ilhas, nossos alunos e alunas passam a ver o todo e como estamos todos entrelaçados pela fé na vida, pela fé na humanidade e pela união entre os povos, temas que fazem parte do currículo das séries iniciais da educação básica.
Círio da Escola de Aplicação.
Ano: 2017.
Foto: Alexandre Moraes.
No ano de 2017 o Círio da Escola de Aplicação foi noticiado portal da UFPA. A reportagem de Caio Maia destacou como o projeto ensina a diversidade cultural e desenvolve práticas pedagógicas inovadoras. A reportagem cita uma fala da professora Wanderléia Medeiros Leitão que sintetizava o projeto:
É possível dialogar sobre diversidade cultural num processo de encontros e reencontros de/entre sujeitos, partilhando saberes e conhecimentos. Essa partilha impulsiona-nos a outras vivências: músicas, poesias, tucupi, jambu, goma, mandioca, camarão, maniçoba... Arte, emoção, educação, inclusão, fé, pessoas, mãos, esperanças, pão, seres viventes, lutadores, aprendentes. Seres de imaginação, criação. E nesse movimento, como não se surpreender, não conceber essas ações e continuar a caminhar nessa lúdica e pedagógica aventura?
A esta altura da leitura, esperamos tê-lo convencido sobre a importância desse projeto. No entanto, ele tem muito mais a nos falar sobre ontem, sobre hoje e sobre o nosso amanhã.
É preciso reconhecer que a história dos 60 anos da nossa escola está entrelaçado aos projetos que nela vivem e que, ao longo do tempo, a mantém de pé. Neste ponto convido te convido a retornar conosco, mais uma vez, aos anos 1990, quando essa história começou. Conforme dissemos anteriormente, o fim da ditadura militar, em 1985, e o processo de redemocratização do país proporcionaram o avanço de pautas em defesa da educação. Os CAP ganharam visibilidade nessa década e uma nova geração de docentes renovou os ares desses lugares. No mundo todo se discutia o futuro da educação, mas, no Brasil dos anos 1990, o retrato da educação era outro.
Alunos do NPI posam em frente a bloco de salas de aula.
Ano: 1985.
Fonte: Reencontro NPI.
A fotografia acima foi feita no ano de 1985, 10 anos após a transferência da comunidade escolar para o bairro da Terra Firme, em 1975. No registro a alegria e integração da turma contrasta com o abandono da estrutura física do prédio. 11 anos após esse registro, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação no ano de 1996. Nessa Lei, os CAP não foram mencionados como parte das políticas de Estado para a educação. Pesquisas no campo da educação corroboram ao fato de que essas instituições de ensino foram vistas durante o governo FHC como "atrasadas", "colégios dos anos 1940" e como uma questão a ser resolvida pelas universidades.
Não à toa, quando sondamos as memórias dos docentes da geração dos anos 1990, percebemos uma identificação muito forte com a luta pela carreira EBTT e pela manutenção dos CAP. Dentro da agenda de lutas em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, esteve contida a luta contra os cortes na educação para a educação básica e a alusão a movimentos grevistas vitoriosos. Essas pautas conviviam com o desmonte da educação, o abandono dos espaços públicos e a precarização do trabalho docente e na própria qualidade de ensino ofertada, característico dos anos 1990. Durante mais da metade dos anos 2000 não foram abertas novas vagas de concurso público para os CAP no Brasil. A partir de 2010 as vagas abertas para concurso contemplavam apenas códigos de vagas antigas. Em meio ao crescimento da demanda e a urgência por novas vagas para docentes, os CAP conviveram com o fantasma da perda de identidade dessas instituições nos anos 2000. Em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff, uma minuta do MEC chamava novamente a atenção para os CAP. Nela, tais instituições eram vistas apenas como escolas de educação básica, as quais, uma vez regulamentadas, poderiam ser transferidas para a gestão municipal ou estadual.
Conforme podemos perceber, os CAP são territórios que seguem historicamente em disputa. Projetos como o Educação e cultura: o entrelaçar do Círio de Nazaré nas vivências da Escola de Aplicação devem nos servir de inspiração para seguirmos dando sentido e identidade ao nosso lugar. É importante olhar para os meandros dos 60 anos da nossa escola e perceber como ela foi sendo ocupada e se tornando um lugar de (re)existências. Desde os anos 2000 a Escola de Aplicação se abriu para a comunidade ao seu entorno. Desde os anos 2000 a Escola de Aplicação se enegreceu e se tornou cada vez mais diversa. Desde o ano de 2000 a Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará propõe-se a desenvolver um trabalho educacional que oportunize ao graduando das licenciaturas, condições de desenvolver as habilidades didáticas e profissionais, atuando como veículo de integração entre a Educação Superior e a Educação Básica e, aos educandos da Educação Básica, condições de desenvolver autonomia intelectual, criatividade, inovação, oportunidade, consciente de sua cidadania, tais pressupostos respondem ao que ela é.
A história dos projetos da nossa escola se entrelaça com a sua ancestralidade. Ancestralidade reconhecida nas memórias de quando a professora Graça Mulatinho recolhia flores para a berlinda nos anos 1980/1990. Ancestralidade transcrita nos olhos marejados de emoção do seu Marconi, quando rememorou o dia em que fez a berlinda para a nossa festa do Círio de Nazaré. Ancestralidade escrita em projeto e em tese de doutorado defendida pela professora Wanderléia Leitão. Ancestralidade que atravessa a todos nós quando somos mobilizados a sair com nossos alunos e alunas de sala de aula e levá-los para fora, para o mundo.
Quando uma docente ou um docente se propõe implementar um projeto, a Escola de Aplicação inteira se move com ela e com ele. Quando conhecemos a nossa história e como ela é atravessada pelas cores, sabores e cheiros da nossa cultura. Quando nos reconhecemos na luta para (re)existir nesse lugar. Quando compartilhamos o senso de comunidade e reconhecemos a potência de nossos projetos, se torna impossível não se sentir parte dessa escola, dessa história, desses 60 anos.
Finalizamos nossa história de hoje fazendo alusão a saudação do Papa Francisco ao povo brasileiro no ano de 2022.
"Que Nossa Senhora Aparecida livre o brasileiro do ódio, intolerância e violência".
Pedimos que Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da Amazônia, reverbere esta interseção e que proteja a nossa comunidade escola, nosso povo, nossas florestas, nossas águas, nossa fauna, nosso ar e que inspire em nós uma esperança tamanha que seja capaz de reverte a crise climática que atravessamos.
Seguem alguns registros feitos pela nossa comunidade escolar durante o Círio da Escola de Aplicação da UFPA de 2023. Neste ano o festejo foi organizado pelas professoras MarideteDaibes da Silva, Vanja Vago de Vilhena, Livia Maria Neves Bentes, Lanna Karina Araújo de Lima Rodrigues, Wanderléia Leitão e os professores, Eduardo Wagner Nunes Chagas e Ailton Lima Miranda. A realização da festividade conta com o apoio da Direção da EA/UFPA, bem como das coordenações de ensino, docentes, técnicos, além de responsáveis de alunos e alunas que fazem parte da nossa comunidade escolar.
Viva Nossa Senhora de Nazaré!
Viva a nossa cultura popular!
Vida longa a Escola de Aplicação da UFPA!
Feliz Círio!
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