Eu olho o mundo em torno de mim, eu vejo seres, eu vejo seres que se movem, eu vejo seres que embora vivos não se movem nem vivem, eu vejo coisas, pessoas, eu vejo fatos e há nome para essas coisas que eu aprendi socialmente, aprendi desde a infância, pelos dois anos comecei a ganhar um comando sobre a minha fala.
Paulo Freire durante Conferência no Núcleo Pedagógico Integrado (Atual Escola de Aplicação da UFPA).
Mas antes mesmo de dizer a coisa, eu sinto a coisa. Vamos tomar por exemplo isto que está aqui (um copo d’água): eu o pego com minhas mãos, com meus dedos e eu sinto isso. De tal forma a experiência que eu tenho feito na minha vida, dentro da minha cultura me ensinou através de pegar as coisas que mesmo que eu estivesse de olhos fechados e alguém me desse isso para que pegasse e perguntasse o que era eu diria: - um copo, de matéria plástica, etc.
Então eu sinto, com os meus sentidos, e aqui eu tive exatamente agora o tato. Imediatamente assim que, ou simultaneamente eu senti a coisa, eu percebi. Então eu tenho em primeiro lugar, a sensibilidade da coisa; em segundo lugar, mas concomitantemente, eu tenho a percepção da coisa; em terceiro lugar, eu digo a coisa, eu falo a coisa.
Vejam bem, é uma coisa fantástica quando a gente pensa, por exemplo, nos milênios que esse bicho que a gente vem sendo se chama homem e mulher. Há milênios esse bicho veio de outro bicho; nós estamos inseridos num processo de evolução. Em certo momento que a gente não detecta exatamente, o bicho virando “bicho gente” começou a fazer essa primeira experiência de sensibilizar-se com a coisa, de perceber a coisa e de usá-la, de criar possibilidades de mudar o contexto, mudar o “ao redor” dele, com o uso da mão, depois com o uso do instrumento que ele fez e com o qual ele prolongou o braço. Se antes ele tinha que pegar o bicho com a mão, séculos de experiência ensinaram-no a pegar o bicho com um instrumento que ele fez, então ele prolongou o braço em 20 metros e diminui o risco. Só muito tempo depois, socialmente sempre em função da realidade contextual que esse bicho virando gente, além de sentir e perceber, foi falando a percepção do sentido da coisa . (...) Historicamente o “bicho gente” primeiro sentiu, percebeu, transformou o mundo, pra assim, muito tempo depois, falar sobre o mundo transformando-se.
Paulo Freire durante Conferência no Núcleo Pedagógico Integrado (Atual Escola de Aplicação da UFPA).
Por isso é que eu sempre tenho dito que a leitura do mundo precede sempre à leitura da palavra. Isso se deu historicamente e continua se dando hoje, com os filhos de vocês, com os netos; quer dizer, conosco. Quer dizer: a gente lê o mundo primeiro, depois é que lê a palavra e que escreve a palavra.
Um dos grandes e trágicos equívocos é separar ler de escrever – que a Universidade continua fazendo isso, que é uma coisa horrível. Os estudantes, sobretudo de pós-graduação (mas esse exercício deveria começar na graduação) de modo geral, tem na escrita da dissertação ou da tese uma espécie de inferno ameaçador. É uma coisa terrível, o medo de escrever, a incompetência para escrever, a impossibilidade. Como sabe se nunca faz bilhete? Não escreve carta, só faz telefonar de um para o outro, não faz um bilhete para o amigo que saiu de Belém, o que saiu daqui foi para o Recife não escreve para o de cá, nem para a família telefona, quer dizer, continua o oral, oral, oral... Quando de repente a Universidade exige um “catatau”, e ainda com aquelas exigências idiotas de “marco teórico”, isso e aquilo.
Gente, é preciso escrever todo dia. Eu deixo a sugestão de ir à biblioteca e escrever uma carta, nem que seja para uma pessoa hipotética. (...) Escrever é como tudo: ninguém anda a não ser andando, ninguém nada a não ser nadando (...) Sugiro aos alfabetizados que também comecem a escrever. Não é possível ler sem escrever e não é possível escrever sem ler – não dá, a separação é um “aleijão”, a dicotomia entre uma coisa e outra é deformação do ser.
Pois bem, essa coisa continua hoje: eu sinto, percebo e falo. Isso faz o professor universitário e isso faz, um pouco, o analfabeto. O analfabeto sente como eu, percebe como eu, fala como eu, mas, nem escreve, nem lê. Quer dizer, essa é a grande diferença que há, a única que há entre eu e o analfabeto. No momento em que, por “n” razões sociais e econômicas, não pela inteligência eu fui capaz; eu virei capaz porque as estruturas da sociedade quiseram que eu virasse capaz, não um decreto do meu pai, minha mãe.
Paulo Freire durante Conferência no Núcleo Pedagógico Integrado (Atual Escola de Aplicação da UFPA).
A nossa companheira que está aqui, tão feliz hoje, [alfabetizando do programa de alfabetização da UFPA – PROA] não se alfabetizou antes do PROA exatamente porque houve um descaso político do Poder Público brasileiro, não por causa dela. A deficiência não é dela, a deficiência é da sociedade, que precisa por isso ser mudada, transformada radicalmente.
Então, se isso é uma verdade, o que é alfabetizar?
Alfabetizar é fazer possível a quem não lê e escreve, ganhar e ampliar essa capacidade de, além de sentir, perceber e falar, escrever e ler. É isso que a gente poderia chamar de alfabetizar e fazer a montagem do sistema de sinais. Agora, a tese central que eu venho defendendo, e que é fundamental, é que essa montagem do sistema de sinais não é algo que o alfabetizador dá de presente, não é como se fosse um martelo, um prego que o marceneiro dá ao ajudante e diz: - Pega esse martelo e prega esse prego. Não, isso é algo que o alfabetizando ou a alfabetizanda, com a ajuda do educador ou da educadora tem de criar em si para, para si, consigo e com o educador.
Por isso, há trinta anos atrás eu dizia: a alfabetização é um ato criador, e porque é um ato criador o alfabetizando tem que ser visto, percebido como um sejeito capaz de criar e a sua criação específica neste caso é exatamente a criação deste sistema de sinais que ele não tem. Mas não tem, não porque ele seja naturalmente incompetente, “de nascença”. (...) O analfabeto não é ontologicamente incapaz, ninguém nasce incapaz a não ser em caso de deficiência genética, etc.
Normalmente nascemos todos iguais, com possibilidade de saber e possibilidade de não saber, desde que a possibilidade de saber fosse proibida de ser. É isso que acontece com o analfabeto: a possibilidade com a qual nasceu não teve chance de se desenvolver e aí ele não pode montar o sistema de sinais.
Então, no exercício desta montagem, a tese democrática fundamental é a de que na relação entre o educador ou educadora e os educandos se dê, se provoque, se proponha aos alfabetizandos e alfabetizandas a experiência, - por sinal muito bonita – através da qual estes se assumam como fazedores da sua palavra. Não pode haver coisa mais bacana, mais bonita do que a gente ouvir essa afirmação da companheira que veio cá dizer: - poxa, tô podendo fazer isso.
E, na verdade, a alfabetização de adultos ou não, se assim feita, se assim realizada e não memorizada mecanicamente é uma chave com que o recém alfabetizado começa a abrir portas, janelas, e ver o mundo que antes ele não via. Ele antes olhava para certas dimensões do mundo, percebia as coisas que estavam lá, mas não chegava propriamente a ver, a criticar, a saber isso que a gente chama “a causa das coisas vistas”, quer dizer, a razão de ser. É por isso que o exemplo que muita gente, mesmo até lendo um pouco, diz com relação à sua vida e à vida do seu povo, que não dá jeito de mudar é: “porque Deus quer”, e dá a Deus uma responsabilidade que nunca teve e jamais quis ter. Deus não é responsável porque os brasileiros estamos com fome. Quanto mais a gente acredita nisso, tanto mais a gente dá dinheiro para pessoas comprarem emissora de televisão e rádio.
(...) Depois dessas considerações primeiras, eu posso trazer uma outra afirmação que já comecei a fazer que é a seguinte: o alfabetizando envolvido num processo de criação e recriação, cada vez mais é convidado, e a sua prática crescerá na medida em que, aceitando o convite, se mete na tarefa de conhecer o mundo pelo conhecimento da palavra, pelo conhecimento das frases, pelo conhecimento do discurso que ele vai escrever e que ele lê quando o outro escreveu. Quanto mais ele assuma esse papel de sujeito, portanto sujeito que decide, sujeito que escolhe, sujeito que compara, sujeito que pensa, sujeito que atribui valor, que diz: - isso presta e isso não presta, sujeito que quer, sujeito que recusa, sujeito que acusa, sujeito que nega, sujeito que afirma, sujeito que diz basta, sujeito que diz quero mais, sujeito que diz posso, sujeito que diz vou, sujeito que anda, caminha, marcha, corre, sujeito que ama, sujeito que tem raiva, e que ama com ou sem “boto” [mamífero aquático da Amazônia; objeto de lenda regional], e quanto mais boto melhor.
Quer dizer que isso que é o que tem que mover. Isso é o fundamental, agora evidente que para fazer isso, para você chegar depois ao domínio místico da frase, do discurso, da palavra, você tem que ter técnicas, você tem que se fundamentar em certas pesquisas científicas que vem sendo feitas por grandes “caras” no mundo.
Hoje é impossível lidar com a questão da alfabetização sem tocar em problemas de filosofia como eu toquei aqui agora (...) Tudo que eu estou dizendo aqui é filosófico, é filosofia (...) Você tem que passar por uma coisa chamada considerações ou pensamentos que são estudadas na antropologia, por exemplo. Não que esteja pensando que para ser alfabetizador precisa ser acadêmico, precisa tirar curso de mestrado, mas é preciso desenvolver um pouco a sensibilidade para “adivinhar” a realidade, a afetividade, o sonho, o desejo do alfabetizando com quem a gente trabalha e certas bases de natureza científica em torno das quais a gente não precisa virar especializado, precisa saber o que significa por exemplo a relação entre pensamento, realidade, linguagem.
Houve um “cara”, que morreu em 1934, um russo, que nunca foi ortodoxo marxista, pelo contrário, por causa disso ficou “abafado” até recentemente – morreu moço, com 32, 33 anos – e que se chamou Vigotsky. Esse russo deu contribuições extraordinárias à compreensão do que é a linguagem, do que é o pensamento, da possibilidade de você pensar e não falar, mas nunca de você falar sem pensar. Quer dizer, é possível pensar e não falar e aí está o caso dos suros/mudos, eles pensam mas não falam. Agora falar sem pensar não dá, não é possível e falar e pensar “desgarrado” do contexto histórico, social, político, cultural é também absolutamente impossível.
Há também um outro “cara” suíço que se chamou Piaget, um grande estudioso da psicologia mas, sobretudo, ele estudou a vida inteira como é que a gente adquire a linguagem, como é que a gente “mexe” com a inteligência, o que é a inteligência.
Eu morei dez anos na Suíça – isto é um pormenor – e o interessante, eu nunca fui visitar o Piaget. Porque eu já sabia da idade dele, bem mais velho que eu, e eu sabia que ele trabalhava de manhã à noite, na Universidade, num Centro de Pesquisas de Conhecimento, e eu tinha remorso anterior, a priori, de tirar dez minutos dele. Encontrei-o um dia numa solenidade na Universidade de Genebra.
Você precisa ficar um pouco a par, pois a obra dele é genial, eu acho que raramente alguém leu tudo. Recentemente uma pesquisadora argentina chamada Emília Ferreiro, continuou fazendo uma série de pesquisas em torno dessa questão da linguagem e da alfabetização. Um dos equívocos dos seguidores da Emília é o de fazerem de Emília uma educadora e uma metodologista, quando na verdade ela não é nada disso, ela é uma grande cientista que não tem nenhum gosto em dizer que é educadora. Uma outra pessoa que pesquisa nesta mesma linha, que por coincidência é minha filha, é a Maria Madalena, que tem um trabalho riquíssimo sobre isso e eu acho também que no Brasil não é possível discutir estas coisas sem se passar por isso, sem medo.
Paulo Freire em visita à ilha do Cumbu com professores do NPI.
Do ponto de vista da compreensão sociológica, política, histórica do analfabetismo, e não da alfabetização, existe o livro de Ana Maria [Freire] em que ela estuda as raízes do analfabetismo, não é problema de alfabetização é de história da alfabetização no Brasil. Quer dizer em última análise o que eu quero dizer é que o trabalho que a gente faz com os alfabetizandos é um trabalho muito sério, agora vejam bem, com isso eu não quero dizer que o alfabetizador ouvira um piagetiano, um vigostkyano ou não pode ser um educador, não isso que eu estou dizendo, mas os que formam os alfabetizadores não podem estar distantes dessas leituras, eu até esqueci de citar um cara que não pode deixar de ser estudado que sou eu mesmo.
Eu quero dizer a vocês o seguinte, eu confesso a vocês, eu tenho horror ao sujeito imodesto, mas tenho mais horror ainda ao sujeito falsamente modesto, por exemplo, eu jamais comecei uma cerimônia dizendo: “não devia bem ser eu que aqui estivesse”. Eu acho que se você não tiver consciência de seu valor, se você não conhecer os limites de seu saber pra cá e pra lá, você não pode ser eficaz e você não dá testemunho aos seus alunos e aos pupilos de sua ética, de sua decência. Segundo, se você não tem consciência do que pode fazer, você inclusive não se atira para fazer, então eu acho que essa coisa é uma coisa que eu estou muito consciente e eu não tenho dúvida nenhuma da contribuição que eu dei a toda essa história e pra toda América Latina, foi uma contribuição séria, rigorosa e não foi por acaso que eu passei anos estudando isso. Então seria hoje que eu viesse aqui pra dizer: “olhe, não adianta não”, adianta sim, é fundamental o que eu disse aqui, para nosso país, para a experiência democrática que a gente precisa estimular, para mudar esse país e torna-lo mais democrático, mais sério e que a coisa pública seja mais respeitada ou pelo menos, menos desrespeitada. Em última análise então, o papel criador, o papel, enfim do alfabetizando na criação da sua própria possibilidade de ler e escrever é indispensável numa perspectiva democrática, numa perspectiva autoritária não. O educador mete na cabeça do alfabetizando as palavras. Por isso é que pra mim uma das condições para que o alfabetizando se vá assumindo nesse processo criador é de que a prática alfabetizadora deva partir com o alfabetizando do respeito à sua identidade individual, cultural e classe social. Fora disso não é possível, fora disso o sonho democrático inexiste já. Como é que você pode ser progressista desrespeitando a identidade de classe cultural e individual do grupo com quem você vai trabalhar?! Quer dizer você não pode fazer isso, propor que o alfabetizando metido na experiência em que eu chamei pura do silêncio, que nos vem arrematando, se a suma, se você começa a propor a alfabetização a ele a partir do seu discurso. Então a palavra tem que vir do alfabetizando que numa perspectiva democrática estabelece um programa e um processo de alfabetização dos adultos.
Como eu disse antes é possível haver os pensamentos sem palavra, mas não pode haver palavra sem pensamento. O que eu tenho que fazer na programação do trabalho é escolher, é sentir, é perceber o descobrir inclusive também, a profundidade substantiva do discurso popular e retirar desse discurso popular as sentenças ou as palavras dentro das sentenças que a gente poderia chamar de geradoras e aí então começar o trabalho com o próprio grupo popular, se encontrando a si mesmo no universo que discute, fora disso é invasão cultural.
Outra coisa com a qual eu sempre estive me preocupando. Quer dizer a velha crítica no fim dos anos 60, nos fins dos anos 50: “Eva viu a uva”, eu me lembro que no Recife por exemplo, havia em primeiro lugar muito poucas Evas, - pode ser que agora até haja mais, mas havia pouquíssimas Evas, eu não conheci nenhuma Eva no meu universo de relações e no meio popular também nunca; em segundo lugar não havia uva, agora há. Quer dizer, chega um dia que tem uva, e quem podia comprar uva era professor universitário: - uma filinha minha adoecia e o médico dizia: “Paulo compra umas uvinhas” eu ia ao centro de Recife onde havia os detalhes de uma igreja chamada de Santo Antônio onde havia um tabuleiro, havia uma banca que vendia uva e eu consegui comprar duzentas dúzias, - como professor universitário! Nessa época havia cartilhas que dizia: “Eva viu a uva”, por que? Porque o cara que estava escrevendo a cartilha estava interessado em produzir o som da consoante V, então para produzir o som da consoante V não tinha nem uma preocupação com o pensamento, com a antropologia, com a ideologia, com os desejos populares, porque ele tinha uma preocupação estritamente técnico e linguístico. Quer dizer, isso não tem sentido, você tem que partir do ponto da sensibilidade (seja para menino ou para adulto), do desejo, do mundo da dúvida, do mundo dos sonhos, do meio dos educandos. E não do mundo da nossa sabedoria.
Essa é a arrogância dos educadores. Eles nem se quer pensam nos seus meios, pensam na sua incompetência. Eles falam na rigorosidade do seu saber, e só porque pensam na rigorosidade do seu saber, perdem a rigorosidade do seu saber. Já não são capazes de descobrir o condimento de inseguranças de que a rigorosidade precisa. Sem a insegurança, a rigorosidade vai para o “beleléu”. Quer dizer em última análise, eu queria tocar num ponto que eu acho muito importante, que é essa na democracia da alfabetização, que é essa do papel na chamada prática de conhecer em que o alfabetizando, para mim não, pra mim o alfabetizando está metido na prática de ele mesmo assumir a possibilidade de conhecer e o direito de conhecer.
Sem esse ponto de partida a alfabetização para mim não tem significação, ela não é neutra, ela é um ato político e sendo um ato político, o que me inspira no ato político é exatamente o gosto pela liberdade de ser, de estar sendo, da liberdade de andar, da liberdade de parar, da liberdade de voltar, da liberdade de perguntar, da liberdade de sonhar, da liberdade de dizer não, da liberdade de farrear, da liberdade de aplaudir, da liberdade de achar bonita a lua que aparece, da liberdade de me banhar, da liberdade de acreditar ou não acreditar na potência e na força do boto.
Resolução de outorga do título de Doutor Honoris Causa a Paulo Freire
Registro histórico. Muito bom. Projeto excelente, traz à lume histórias que fizeram e fazem a história dessa instituição. Parabéns!